Caminhando por uma rua fria e escura, envolta por uma névoa esbranquiçada, quase cristalina, encontro um velho esfarrapado sentado na calçada. Ele me olha atentamente. Vejo seu rosto triste, gasto pelo tempo e pelo sofrimento. Quando dei por mim, estava parado em frente a ele, sem conseguir me mover, nem um passo.
- Sente-se por favor - me pediu gentilmente, com uma voz surpreendentemente firme.
Me sento ao seu lado e o velho começa a falar, não consigo me mover, não consigo levantar e correr dali. Estranhamente suas palavras vão me fazendo sonhar.
- "Devo ter tido uma morte tranqüila, tal como foi o decorrer de toda a minha existência. Tive uma vida pacata, sem grandes ambições, sem grandes conquistas. Eu queria morrer sorrindo, mas não sei se consegui. Talvez para dar uma pincelada de alegria nesse fim tão triste que a todos espera. Acho que chegou a hora da partilha daquilo que de mais valor eu possuía. É muito importante que nesse momento você esteja tranquilo, pois cada um receberá aquilo que mais necessita, mesmo que essa necessidade seja inconsciente."
E assim continuou...
"Para os ambiciosos, eu deixo a metade da minha vida, uma vida sem felicidade. Para vocês, deixo a lição da ambição, uma lição de humanismo, de caridade, de solidariedade, de compaixão. Deixo o meu maior legado, o perdão. Espero que consigam afogar essa vontade extrema; enfim deixo o mar como exemplo, um imenso mundo líquido que, as vezes, dá muito mais do que tira."
"Para os vaidosos, deixo a lembrança dos deformados, portadores de cicatrizes, verdadeiras feridas na alma. Espero que procurem ver mais o interior das pessoas. Olhem para vocês mesmos, mas não deixem de criticar o seu próprio ser. Não sejam como a Lua que embora pareça tão bonita e brilhante, não passaria de um satélite escuro e obscuro se não fosse o reflexo de um ser maior, o sol."
"Para os invejosos, deixo o meu desejo solene de não querer, a minha vontade de não conseguir, de não ter. Deixo todos os momentos em que superei em mim a inveja doentia que se abate sobre os homens. Deixo de herança, o único desejo que não consegui conter, anular e, por ironia, o desejo que não consegui realizar, o desejo de viver muito mais do que eu vivi."
"Para os idealistas, deixo todos os meus sonhos. Deixo um símbolo , uma pequena e simples flor, pode não ser a mais bela, mas certamente é a mais significativa - um jasmim perfumado, fresco."
"Para os realistas, apenas um abraço amigo, um tapinha nas costas e meus sinceros votos de uma feliz existência sem sonhos nem utopias. Espero que vocês se percam no verdadeiro labirinto da vida, espero que encontrem o realismo total, puro fruto de um ideal perseguido."
"Para os românticos, deixo os momentos em que admirei a beleza da natureza, deixo todas as impressões que consegui extrair de longas meditações feitas tendo companhia uma alma gêmea e milhares de estrelas. Deixo o perfume e a beleza das flores, a fluidez e a elegância dos pássaros."
"Desapareço na certeza de que, lá no fundo, meus erros se diluem juntamente com meu corpo e minha memória se torna limpa e perdida no esquecimento, como um pequeno ser que um dia nasceu em alguma parte desse mundo".
O velho já não está mais ao meu lado. A rua se torna clara, o sol brilha forte e eu retomo meu caminho, seguindo o meu destino....
1976
legal demais
ResponderExcluirlegal demais
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