- Vagabunda, ordinária! Você não serve para nada, velha surda! Como pode ser tão fraca, tão covarde???
A voz ecoou alta e estridente pelos corredores. Era do tipo autoritário, mas totalmente insegura, melancólica, um lamento profundo vindo de dentro de um corpo que olhava outro, com olhar fixo, pesado. O ódio se fazia presente através da revolta interior visível na sua face, nas suas palavras e gestos.
- Olhe só para você, vivendo sozinha em meio a tantos trastes, nem a solidão lhe corroeu, nem pra casar você serviu.
As paredes eram frias e úmidas. Um leve tom esverdeado refletia a luz dos candeeiros que ardiam dia e noite, como se consumissem o tempo como combustível interminável. Cada aposento parecia um museu abandonado; móveis enormes, de madeira escura bem trabalhada, grandes espelhos, tapetes felpudos e poeirentos. Salas enormes que viviam imersas numa semi-escuridão tranquila e enfadonha, cheirando a mofo, mergulhadas num silêncio que só era cortado pelo monólogo frio e espalhafatoso que se desenrolava, ecoando por aquelas paredes, se perdendo no tempo.
- Velha idiota! Você nunca teve coragem de enfrentar o mundo, de deixar que novas correntes lhe carregassem, que novas ideias e formas de viver tomassem conta de sua mente, me confinando aqui, me condenando a não viver, a não ter prazer, a não sentir, tornando toda essa desgraça uma constante na minha vida, como se fosse uma punição por um crime que nunca cometi. Se eu pudesse tocá-la eu a mataria sua velha. Você apodreceu por dentro. Você vive presa numa tumba. Tudo cheira a mofo, inclusive você, velha burra!!
O rosto triste parecia que ia se desmanchar de tanta amargura. Os olhos azuis, pesados, semi-cerrados, eram a única visão agradável naquele corpo nu, enrugado e flácido que continuava de pé, falando, xingando, praguejando. Chorava como uma menina para depois gargalhar, numa risada sarcástica que se espalhava pelo casarão, querendo transmitir uma alegria que não existia, uma felicidade morta.
- Olhe para mim, veja como você me reduziu a um trapo velho e imprestável. Eu devia ter insistido, devia ter fugido de você. Você me obrigou a ficar aqui e me condenou a envelhecer, a apodrecer nessa sala, nesses quartos. Vá para o inferno!!!
O grito soou alto e ela caiu num choro grunido, mais algumas lágrimas rolaram no seu rosto e, enquanto chorava, baixou a cabeça, como se não quisesse ver a sua imagem refletida num grande e velho espelho, chorando também...
- Maldito tempo...
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